segunda-feira, 27 de março de 2017

Modelo de análise de texto para tradução

O poema “The Buffalo” foi publicado em 1934, a década de mais vibrante fulgor poético de Marianne Moore, que então realizou diversas experiências com a forma modernista da sequência poética. Assim, “The Buffalo” surge na revista Poetry a par com “Nine Nectarines”, dentro da sequência com o título algo eufónico “Imperious Ox, Imperial Dish”, que tematiza um jogo de forças entre a soberania do visceral e primitivo e a imposição de uma tradição cultural hierarquizada e discriminatória. O título “The Buffalo” é, desde logo, carregado de associações, seja porque o relacionamos com outros poemas de Moore glosando o colonialismo e a expansão territorial americana, seja por pressentirmos que nesta poética um animal é sempre medido por “noções humanas”, conforme se torna explícito na quarta estrofe: “some would say the sparse-haired / buffalo has met / human notions best.” Os versos são a súmula de uma comparação entre o búfalo e outras espécies bovinas (ou de mamíferos possantes, como é o caso, na quinta estrofe, do elefante), em que este sai favorecido devido às suas qualidades de liberdade free neck”) e genuinidade (afim das classes pobres, ele é domado pelos jovens de penras nuas). Não podem com o búfalo rivalizar os outros bois, que não só foram reduzidos em porte devido à domesticação (caso das vacas leiteiras pardas-suíças ou da raça Holstein, de vacas malhadas holandesas) como de alguma forma acabaram por perder a dignidade selvagem quando se tornaram objecto de representação, conforme se trasmite por exemplo com o advérbio disfórico na alusão ao desenho de Thomas Rowlandson retratando um “boi de atropelo” (Overdrove Ox).
            Porém, A comparação entre o búfalo e a espécie do bisonte confunde de alguma forma as expectativas de leitura. Ao ler a primeira estrofe podemos ser levados a tomar o bisonte como sinónimo do “búfalo” do título, o que nos transporta quer para o território americano quer para as conotações que a negritude assume numa terra que se supõe ser livre das hierarquias aristocráticas – daí que se possa interpretar ironicamente a procura de significado da representação quer do negro na heráldica, quer dos cornos pretos do bisonte, juntamente com a alusão a vários graus mais ou menso indistintos de negro (sendo que as palavras “black” e “niger”, mais conotativas do que denotativas, colocam problemas à tradução). Na sexta estrofe, contudo, o búfalo «de excepção» é claramente identificado com o “Indian Buffalo”, e a referência à preferência do Buda por este animal leva-nos a transportá-lo de uma associação com os nativos americanos (também chamados “Indians” à altura em que Moore escrevia) para uma ligação aos habitantes da Índia, isto é, ao búfalo-asiático. Na verdade, uma carta da autora revela que era este mesmo que tinha em mente (water buffalo) e, segundo a sua biógrafa e crítica Linda Leavell, o poema terá sido igualmente informado pelos projetos de eugenia nazi e pelo conhecimento de que haveria a aspiração de tornar a reproduzir artificialmente os extintos auroques (Leavell, 286-7)
            O poema “The Buffalo”, pois, não só questiona a atribuição de significado às cores de certas raças (invertendo inclusive as normais assunções, «white / Christian heathen») como, na interpretação de Leavell, propõe uma reflexão sobre a evolução natural das espécies por contraste com os cruzamentos para apuração de animais domésticos ou com a aniquilação conertada de certas raças. Segundo esta leitura, a estrofe final do poema, embora reafirme a dignidade natural do búfalo-asiático terá um fundo irónico: «need not fear comparison / with bison».
       Repare-se que esta análise levanta vários problemas para a tradução, desde o nível do léxico especializado da espécie biológica em causa (dificuldade generalizada no tocante à obra de Moore), passando pela indentificação das fontes de écfrase, até à resolução da ambiguidade de uma palavra como Indian (que talvez melhor se resolva por um sinónimo arcaico mais genérico: Búfalo das Índias). A estes acresce a dificuldade de lidar com a prosódia de Marianne Moore – ou «cadência», conforme a própria refere num poema de homenagem a Pound, e que é um nome adequado já que a marca distintiva da estrofe modernista da poeta passa por libertar as rimas de uma posição constante na estrofe, e pela opção de associações consonânticas e assonânticas que parecem cascatear pelo poema, tal como o desenho dos versos. Assim, por exemplo, em
                                    (…) Might
     hematite-
       black, compactly incurved horns on bison,
            have significance? The
soot brown tail-tuft on
       a kind of lion-

tail (…)


temos uma assonância próxima (might / hematite), uma rima masculina, embora espaçada, em “bison” e “lion”, e uma rima interna imperfeita entre “incurved” e “tuft”. Se o reconhecimento destes ecos não padrozinados já será difícil, ainda mais o é a sua reprodução, que só pode ser tentada por efeitos compensatórios (abertura de vogais semelhantes em palavras diferentes, por exemplo). A cadência de Moore é ainda replicada entre estrofes pelo efeito de suspensão que alcança ao dividir palavras compostas (lion-//tail) e que parecem intrínsecos ao propósito de chamar a atenção tanto para o objecto como para a sua descrição verbal, mas que dificilmente se podem manter numa língua como o português em que a formação por composição não é tão produtiva e obedece a regras diferentes.

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