quarta-feira, 5 de abril de 2017

Tendências Deformantes de Antoine Berman


Em seu texto “A Tradução e a Letra ou a Pousada do Longínquo”, Antoine Berman critica as traduções etnocêntricas e hipertextuais e afirma que traduzir é fazer um trabalho sobre a letra com uma “atenção voltada aos jogos de significados”. Para ele, fazer uma tradução etnocêntrica é recusar inserir na cultura de chegada a estranheza do “outro”. Ao tentar fazer com que o leitor, ao ler o texto traduzido, tenha a impressão de que esse texto foi escrito originalmente na língua de chegada, o tradutor está modificando o texto original. É nesse contexto que se insere a analítica da tradução em que Berman pretende “examinar de um modo breve o sistema de deformação dos textos – da letra – que ocorre em todas as traduções, impedindo-as de atingir o seu verdadeiro desígnio”. No caso das traduções etnocêntricas e hipertextuais, esse sistema de deformação é exercido de maneira livre, pois essa deformação é apoiada pelo sistema cultural e literário. Mas a verdade é que qualquer tradutor está sujeito a essas tendências que distanciam a tradução do seu desígnio puro, pois esse sistema de deformação é largamente inconsciente. As treze tendências deformantes apontadas por Berman inserem-se nesse exame feito pela analítica da tradução. Elas destroem a letra do original, procurando respeitar exclusivamente o “sentido” e a “bela forma”.
            Apresentaremos a seguir algumas das treze tendências deformantes observadas nas possíveis traduções do poema “Separation On the River Kiang”, traduzido do chinês para o inglês por Ezra Pound.

Separation On the River Kiang

Ko-Jin goes west from Ko-kaku-ro,
The smoke-flowers are blurred over the river.
His lone sail blots the far sky.
And now I see only the river,
          The long Kiang, reaching heaven. 

Separação do Rio Kiang

Ko-jin afasta-se para oeste de Ko-kaku-ro
As flores-fumaças difusas sobre o rio.
Sua vela solitária mancha o céu distante.
E agora só vejo o rio,
            O grande Kiang, tocando o céu.

            Em relação aos termos “Ko-jin”, “Ko-kaku-ro” e “River Kiang”, se o tradutor optar por traduzir esses termos por equivalentes em língua portuguesa, há a ocorrência da tendência deformante do apagamento das superposições de línguas. Na tradução por “o velho amigo”, “a Torre da Garça Amarela” e “o Rio Amarelo”, ocorre o apagamento da relação de tensão e integração entre a língua portuguesa e chinesa. A tradução torna-se etnocêntrica, não deixando aparecer no poema a língua do outro.
            Na versão de tradução do poema apresentada acima, as expressões “lone sail” e “far sky” foram traduzidas por “vela solitária” e “céu distante”. Na grande maioria das traduções de substantivos e adjetivos do inglês para o português, a ordem dos termos é alterada, pois em português é mais “comum” colocar o adjetivo após o substantivo. A questão que queremos colocar aqui é que essa mudança na ordem não deve ser feita de maneira automática e inconsciente, pois pode levar à tendência deformante da racionalização em que se recompõe as frases em busca de uma certa ideia de ordem sintática. Dessa forma, o tradutor também deve considerar a possibilidade de traduzir “far sky” por “distante céu” e observar quais significados essa ordem “não comum” evoca.
            Ambos os termos “sky” e “heaven” foram traduzidos por “céu” em português. Nesse caso, podemos observar a tendência do empobrecimento quantitativo: há uma perda lexical no poema traduzido, pois a multiplicidade de significantes não foi respeitada. Os dois termos em inglês possuem significados que se relacionam, mas não são exatamente iguais. A palavra “heaven” poderia ter sido traduzida por “paraíso”, mas essa última palavra possui uma conotação religiosa muito forte em língua portuguesa e poderia inserir no poema outros significados que não aparecem no texto original, como por exemplo a ideia de que Ko-jin morreu e foi ao paraíso. Nesse caso, o tradutor optou pelo uso da sinonímia como estratégia de tradução, mas isso também fez com que ocorresse a tendência deformante.
            Para concluir, as perdas em tradução são inevitáveis, no entanto, saber identificar as tendências deformantes é importante para melhorar a qualidade das traduções, uma vez que isto nos permite respeitar as idiossincrasias do autor, mantendo na tradução as marcas do texto, através da mudança de estratégia sempre que necessário. Além disso, as tendências deformantes nos permitem desenvolver um senso crítico, evitando-nos cair nas “armadilhas” as quais estamos sujeitos no ramo da Tradução.

Rhandra T. Lopes 
Tatiane Rocha




















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