Em seu texto “A Tradução e a Letra ou a Pousada do
Longínquo”, Antoine Berman critica as traduções etnocêntricas e hipertextuais e
afirma que traduzir é fazer um trabalho sobre a letra com uma “atenção voltada
aos jogos de significados”. Para ele, fazer uma tradução etnocêntrica é recusar
inserir na cultura de chegada a estranheza do “outro”. Ao tentar fazer com que
o leitor, ao ler o texto traduzido, tenha a impressão de que esse texto foi
escrito originalmente na língua de chegada, o tradutor está modificando o texto
original. É nesse contexto que se insere a analítica
da tradução em que Berman pretende “examinar de um modo breve o sistema de
deformação dos textos – da letra – que ocorre em todas as traduções,
impedindo-as de atingir o seu verdadeiro desígnio”. No caso das traduções
etnocêntricas e hipertextuais, esse sistema de deformação é exercido de maneira
livre, pois essa deformação é apoiada pelo sistema cultural e literário. Mas a
verdade é que qualquer tradutor está sujeito a essas tendências que distanciam a
tradução do seu desígnio puro, pois esse sistema de deformação é largamente
inconsciente. As treze tendências
deformantes apontadas por Berman inserem-se nesse exame feito pela analítica
da tradução. Elas destroem a letra do original, procurando respeitar exclusivamente
o “sentido” e a “bela forma”.
Apresentaremos a seguir
algumas das treze tendências deformantes observadas nas possíveis traduções do
poema “Separation On the River Kiang”, traduzido do chinês para o inglês por
Ezra Pound.
Separation On the River Kiang
Ko-Jin goes
west from Ko-kaku-ro,
The smoke-flowers are blurred over the river.
His lone sail blots the far sky.
And now I see only the river,
The long Kiang, reaching heaven.
The smoke-flowers are blurred over the river.
His lone sail blots the far sky.
And now I see only the river,
The long Kiang, reaching heaven.
Separação do Rio Kiang
Ko-jin
afasta-se para oeste de Ko-kaku-ro
As
flores-fumaças difusas sobre o rio.
Sua vela
solitária mancha o céu distante.
E agora só
vejo o rio,
O grande Kiang, tocando o céu.
Em relação aos termos
“Ko-jin”, “Ko-kaku-ro” e “River Kiang”, se o tradutor optar por traduzir esses
termos por equivalentes em língua portuguesa, há a ocorrência da tendência
deformante do apagamento das superposições de línguas. Na tradução por “o velho
amigo”, “a Torre da Garça Amarela” e “o Rio Amarelo”, ocorre o apagamento da
relação de tensão e integração entre a língua portuguesa e chinesa. A tradução
torna-se etnocêntrica, não deixando aparecer no poema a língua do outro.
Na versão de tradução do
poema apresentada acima, as expressões “lone sail” e “far sky” foram traduzidas por “vela solitária” e “céu distante”. Na
grande maioria das traduções de substantivos e adjetivos do inglês para o
português, a ordem dos termos é alterada, pois em português é mais “comum”
colocar o adjetivo após o substantivo. A questão que queremos colocar aqui é
que essa mudança na ordem não deve ser feita de maneira automática e
inconsciente, pois pode levar à tendência deformante da racionalização em que
se recompõe as frases em busca de uma certa ideia de ordem sintática. Dessa
forma, o tradutor também deve considerar a possibilidade de traduzir “far sky”
por “distante céu” e observar quais significados essa ordem “não comum” evoca.
Ambos os termos “sky” e “heaven”
foram traduzidos por “céu” em português. Nesse caso, podemos observar a
tendência do empobrecimento quantitativo: há uma perda lexical no poema
traduzido, pois a multiplicidade de significantes não foi respeitada. Os dois termos
em inglês possuem significados que se relacionam, mas não são exatamente
iguais. A palavra “heaven” poderia ter sido traduzida por “paraíso”, mas essa
última palavra possui uma conotação religiosa muito forte em língua portuguesa
e poderia inserir no poema outros significados que não aparecem no texto
original, como por exemplo a ideia de que Ko-jin morreu e foi ao paraíso. Nesse
caso, o tradutor optou pelo uso da sinonímia como estratégia de tradução, mas
isso também fez com que ocorresse a tendência deformante.
Para concluir, as perdas em tradução são inevitáveis, no
entanto, saber identificar as tendências deformantes é importante para melhorar
a qualidade das traduções, uma vez que isto nos permite respeitar as
idiossincrasias do autor, mantendo na tradução as marcas do texto, através da
mudança de estratégia sempre que necessário. Além
disso, as tendências deformantes nos permitem desenvolver um senso crítico,
evitando-nos cair nas “armadilhas” as quais estamos sujeitos no ramo da Tradução.
Rhandra T. Lopes
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