Verlaine
Uma tradução para Maria Gabriela
Llansol
Uma canção
Que nunca hei-de cantar
Adormeceu-me nos lábios.
Uma canção
Que nunca hei-de cantar.
Sobre a madressilva
Uma libelinha
E a lua pica
com um raio a água.
Nesse momento vou imaginar
A canção
Que nunca hei-de cantar.
Uma canção cheia de lábios
E sulcos distantes.
Uma canção cheia de horas
perdidas na sombra.
A canção de uma estrela viva
e um dia contínuo.
Querido Spicer,
O dia é contínuo tal como o poema.
Podias preferi-lo permanente ou perpétuo. Foi assim que o leste, não
foi, perpétuo? Mas, como música, é nessa própria insuficiência
(a interpretação, mais precisamente) que a música se conhece
ininterrupta e contínua. «O compositor planeia, a música ri», o
poeta escreve, a poesia é. Por isso, não consigo traduzir o riso da
música tal como a música se ri.
Quando traduzo o que escreveste, não
faço qualquer intenção de reunir partes, como se as houvesse, de
um todo. Pelo contrário, prefiro eliminar qualquer traço que leve a
crer que partes foram reunidas numa só. É o que está ali, por si e
em si mesmo. O poema pode sugerir o infinito se houver um desvio da
norma até bem, bem longe. Apenas ao desmontar os elementos
tradicionalmente usados para construir um poema pode a poesia existir
por si mesma – não como símbolo, nem memória, que era, logo à
partida, memória de um outro poema.
A decomposição das coisas traz à
vida os seus equivalentes. Tal como na música: eu não sei o que uma
flauta é até que alguém a toque para mim. A flauta corresponde a
alguém a tocar a flauta, ou só o som de alguém a tocar a flauta,
ou só o som sem saber que se trata de uma flauta. O som e a flauta
correspondem-se, sem fazer disso nota. E o som é tão visível como
a flauta, podemos apontá-lo como apontamos a flauta, apenas não o
vemos na mesma óptica.
Mas a flauta não é o símbolo do som,
nem o som da flauta a memória de alguém a tocá-la. Escreveste-o e
eu repito, não se trata de reunir partes – em memória de, etc –
mas de deixar que as coisas se correspondam, no seu tempo e espaço.
E se um carro passa na rua, entra pela janela e se faz ouvir para
além da flauta, então, nesse espaço e nesse tempo o carro pertence
tanto ao som como à flauta. Quem o lê como interferência,
desconhece a música que pode passar num carro e manter-se, já
depois do virar da esquina, contínua.
Regina
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