segunda-feira, 8 de maio de 2017

After Spicer

Verlaine

Uma tradução para Maria Gabriela Llansol

Uma canção
Que nunca hei-de cantar
Adormeceu-me nos lábios.
Uma canção
Que nunca hei-de cantar.

Sobre a madressilva
Uma libelinha
E a lua pica
com um raio a água.

Nesse momento vou imaginar
A canção
Que nunca hei-de cantar.

Uma canção cheia de lábios
E sulcos distantes.

Uma canção cheia de horas
perdidas na sombra.

A canção de uma estrela viva
e um dia contínuo.




Querido Spicer,

O dia é contínuo tal como o poema. Podias preferi-lo permanente ou perpétuo. Foi assim que o leste, não foi, perpétuo? Mas, como música, é nessa própria insuficiência (a interpretação, mais precisamente) que a música se conhece ininterrupta e contínua. «O compositor planeia, a música ri», o poeta escreve, a poesia é. Por isso, não consigo traduzir o riso da música tal como a música se ri.

Quando traduzo o que escreveste, não faço qualquer intenção de reunir partes, como se as houvesse, de um todo. Pelo contrário, prefiro eliminar qualquer traço que leve a crer que partes foram reunidas numa só. É o que está ali, por si e em si mesmo. O poema pode sugerir o infinito se houver um desvio da norma até bem, bem longe. Apenas ao desmontar os elementos tradicionalmente usados para construir um poema pode a poesia existir por si mesma – não como símbolo, nem memória, que era, logo à partida, memória de um outro poema.

A decomposição das coisas traz à vida os seus equivalentes. Tal como na música: eu não sei o que uma flauta é até que alguém a toque para mim. A flauta corresponde a alguém a tocar a flauta, ou só o som de alguém a tocar a flauta, ou só o som sem saber que se trata de uma flauta. O som e a flauta correspondem-se, sem fazer disso nota. E o som é tão visível como a flauta, podemos apontá-lo como apontamos a flauta, apenas não o vemos na mesma óptica.

Mas a flauta não é o símbolo do som, nem o som da flauta a memória de alguém a tocá-la. Escreveste-o e eu repito, não se trata de reunir partes – em memória de, etc – mas de deixar que as coisas se correspondam, no seu tempo e espaço. E se um carro passa na rua, entra pela janela e se faz ouvir para além da flauta, então, nesse espaço e nesse tempo o carro pertence tanto ao som como à flauta. Quem o lê como interferência, desconhece a música que pode passar num carro e manter-se, já depois do virar da esquina, contínua.



Regina


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